UM PASSO, OUTRO PASSO E DEPOIS... *
Rodagem de Sétimo Selo de Ingmar Bergman, © Louis Huch - Svensk Filmindustri 1957
Rodagens canceladas. Produções suspensas. Estreias adiadas. Cinemas fechados. Festivais sem data. Realizadores, produtores, directores de fotografia, de som, de arte, assistentes de imagem, perchistas, maquinistas, actores, montadores, coloristas e centenas de profissionais que estruturam o vasto sector do cinema estão parados e sem previsão de regressar ao trabalho. O quadro de incerteza não é local. É mundial. E isso desafia-nos, mais do que nunca, a dirigir o nosso olhar para aquilo que é a génese do cinema, uma arte colectiva.
Somos um ofício jovem, com pouco mais de um século. Mas vivemos do retrato da história da humanidade que conta com centenas de milénios. Epidemias sempre desolaram as sociedades e os filmes pensaram-nas e representaram-nas das mais diversas formas, da tragédia à esperança, com temor ou estoicismo. Recordo um dos primeiros filmes de Ingmar Bergman que vi e que regressei há dias, O Sétimo Selo. O filme tem como base o O livro do Apocalipse do apóstolo João (cujo o título, do grego αποκάλυψις, apokálypsis, significa revelação). Num hipnótico preto e branco, entre as trevas e a luz, Bergman apresenta-nos a peste negra como uma passagem necessária para um novo mundo. O filme espelha a dança macabra da epidemia e a angústia de morte de uma Europa em chamas. Mas apesar da escuridão dos dias, a Primavera moldava a acção com a chegada dos primeiros morangos silvestres.
Para ganhar tempo e reflectir sobre o sentido mais lato da vida, o cavaleiro (o belo Max von Sydow que há dias perdemos), dá início a um jogo de xadrez com a morte. Esse compasso de espera e de contacto com o seu interior, ecoa na suspensão em que todos hoje vivemos. Antonius, o cavaleiro, ergue as mãos ao céu evocando um sinal divino. É justamente entre essa incerteza e desordem que nos situamos no momento presente. Sentimo-nos desamparados como as frágeis - mas em tudo heróicas - personagens de Bergman. Sabemos que estamos diante de uma porta, entre um mundo e outro, ainda que não saibamos no que isso se traduz. Podemos optar por atravessar essa porta, arrastando a realidade que até então conhecíamos e que tentávamos controlar. Ou podemos entrar, com humildade e curiosidade, abrindo mão das certezas que trazíamos e imaginando (como gesto primordial da criação) um novo real. E é no gerúndio que devemos caminhar: reflectindo, escutando, arriscando, trabalhando.
Todos os sectores artísticos vão ficar profundamente marcados por este período de luto, desde logo, o próprio olhar dos artistas. Mas será na economia do sector, que é a trave mestra da sua produção, que podemos antecipar a maior debilidade. Os profissionais do cinema vivem do retorno do seu trabalho diário, sem qualquer tábua de salvação - no nosso país -, privada ou governamental. Raros são os que assinam contratos. Não trabalhamos em continuidade (os filmes são geralmente feitos entre curtas janelas de tempo). O número de profissionais das diferentes áreas cinematográficas excede a oferta anual de filmes produzidos. Os apoios financeiros do Instituto do Cinema são desajustados às necessidades reais dos filmes. Os baixos orçamentos com que filmamos não contemplam imprevistos. Somos uma arte de dominó, onde a queda de um elemento compromete a queda da peça vizinha: não há ideia sem autor, não há filmes sem dinheiro, não há realizador sem personagens, não há produtor sem equipa, não há cinemas sem público e, sobretudo, não há filmes sem humanidade.
Estruturas de produção independente como a Terratreme (produtora fundada por um colectivo de realizadores e produtor com quem trabalho há 6 anos) sofrem incomparavelmente com a paragem de produção, pois a sua vitalidade está intrinsecamente relacionada com a entrada e gestão dos apoios financeiros para cada filme e respectivas co-produções internacionais. Com a paragem do sector numa escala mundial, sem se produzir e exibir, muitas produtoras (e mesmo realizadores) optaram durante este período por partilhar as suas filmografias online. Como reacção a um silêncio imposto, exploraram e potenciaram as ferramentas que há muito foram entrando no mercado de distribuição. Foram ao encontro das pessoas que estão fechadas em casa, levando o cinema a ser aquilo que sempre foi e que se revela ainda mais necessário neste período: uma janela para o outro e para o mundo. E ainda que esse gesto seja passível de reflexão e de crítica, aponta para o tal atravessar da porta que atrás referi, com os olhos postos num devir.
O streaming é subestimado por aqueles que sabem que a experiência do cinema deve ser tida numa sala pensada e construída para esse efeito. Fazemos filmes para que eles se elevem numa tela, como de um culto sagrado se tratasse - e trata. A arte substituiu a religião como veículo de transcendência para uma grande parte da humanidade e deve reunir condições de contemplação como só os museus e as salas de cinema nos podem oferecer. Essa altitude de pensamento e emoções que atingimos quando vemos um filme em sala - e em comunhão com o outro - é insubstituível. Colocam-se assim várias questões: que experiência é então a que temos em casa quando vemos filmes através dos computadores? Porque estão as salas de cinema vazias? Em que tem contribuído a sociedade civil, o estado e o próprio meio, para a vitalidade (ou falta de) do cinema?
As respostas a estas questões não as temos. Ou melhor, temos opiniões e convicções, uns reparam mais nas distâncias e outros nas proximidades. No momento presente, podemos resistir ou acolher este advento, como o fizemos, aliás, quando o cinema digital entrou em força nas nossas produções. E com o passado temos o dever de aprender: não podemos travar a evolução tecnológica. Os filmes em streaming vieram para ficar, por muito frustrante que seja, num primeiro impacto, para os profissionais do cinema. Mas tudo na vida tem um verso e um reverso. Por detrás de uma luta desleal com as salas de cinema, não estaremos a encontrar formas aliadas de distribuir e difundir os nossos filmes? Não será mais produtivo integrarmos e regulamentarmos os meios domésticos de difusão para simultaneamente apoiarmos a exibição em sala? Não poderá a difusão digital amortecer o impacto da crise que vivemos e vamos viver? Estas e outras mudanças tecnológicas e culturais são processos necessários. São dores de crescimento e uma inevitabilidade inelutável. Qualquer actividade que neste momento conduza a um estado mais harmónico parece-me válida e valiosa.
Neste zeitgeist apresentam-se alguns festivais de cinema como o Visions du Réel na Suiça que se viu obrigado a transformar a sua 51ª edição numa versão online. Solidária com a difícil decisão que o festival tinha em mãos (a outra opção seria cancelar), aceitei as condições para integrar o meu próximo filme, Amor Fati, na competição internacional. Vejo-me diante de uma experiência nova e, para afastar os males, esforço-me por recordar o quanto as artes beneficiaram ao longo da história com a experimentação tecnológica, introduzindo aperfeiçoamento nas técnicas estéticas e narrativas. Tenho-me debatido com questões que não dominava (bitstream, encoding speed, codecs, video compressor, e todo um vocabulário que não tivera antes necessidade de aprofundar) e, mais do que nunca, sinto que os artistas são fruto da sua época. Cabe-nos viver o instante presente sem autopiedade. Responder produtivamente a uma crise é ir ao encontro do mais belo e criativo que a humanidade possui. Não creio que seja prudente parar. Para além da reflexão, devemos usufruir deste interregno. Esta é a lição suprema e indispensável de uma arte em crise.
E se o meu último filme Ama-San, para minha grande satisfação, se aliou à luta pela igualdade de género que pautava o mundo aquando a sua estreia, Amor Fati evoca agora a importância de união entre pessoas (e animais) para juntos enfrentarmos os desafios da vida. Esta pertinência ou, se quisermos, obra do destino, é em si o sentido mais profundo da expressão latina Amor Fati, a aceitação da vida, no mais belo da existência e nos momentos mais dolorosos que Nietzsche evocou: “A minha fórmula para a grandeza do ser humano é amor fati: consiste em nada pretender ter diferente do que se tem, nem para a frente, nem para trás, nem para toda a eternidade”.
Tenho como desejo pessoal que a estreia de Amor Fati possa ser entendida como uma esperança para um sector: uma oração colectiva. É o triunfo da vida sobre a morte. Trabalhemos juntos para uma mudança que integra um olhar novo, individual e colectivo. Olhemos o céu silencioso que antecede a revelação, como Antonius, o cavaleiro do Sétimo Selo, que dialogava com a morte enquanto a Europa era devastada por uma epidemia: “- O vazio é um espelho. Vejo o meu rosto. Vivo agora num mundo de fantasmas. Um prisioneiro dos meus sonhos. - Ainda assim não queres morrer? - Sim, quero. - E o que esperas? - Conhecimento.”
Somos um ofício jovem, com pouco mais de um século. Mas vivemos do retrato da história da humanidade que conta com centenas de milénios. Epidemias sempre desolaram as sociedades e os filmes pensaram-nas e representaram-nas das mais diversas formas, da tragédia à esperança, com temor ou estoicismo. Recordo um dos primeiros filmes de Ingmar Bergman que vi e que regressei há dias, O Sétimo Selo. O filme tem como base o O livro do Apocalipse do apóstolo João (cujo o título, do grego αποκάλυψις, apokálypsis, significa revelação). Num hipnótico preto e branco, entre as trevas e a luz, Bergman apresenta-nos a peste negra como uma passagem necessária para um novo mundo. O filme espelha a dança macabra da epidemia e a angústia de morte de uma Europa em chamas. Mas apesar da escuridão dos dias, a Primavera moldava a acção com a chegada dos primeiros morangos silvestres.
Para ganhar tempo e reflectir sobre o sentido mais lato da vida, o cavaleiro (o belo Max von Sydow que há dias perdemos), dá início a um jogo de xadrez com a morte. Esse compasso de espera e de contacto com o seu interior, ecoa na suspensão em que todos hoje vivemos. Antonius, o cavaleiro, ergue as mãos ao céu evocando um sinal divino. É justamente entre essa incerteza e desordem que nos situamos no momento presente. Sentimo-nos desamparados como as frágeis - mas em tudo heróicas - personagens de Bergman. Sabemos que estamos diante de uma porta, entre um mundo e outro, ainda que não saibamos no que isso se traduz. Podemos optar por atravessar essa porta, arrastando a realidade que até então conhecíamos e que tentávamos controlar. Ou podemos entrar, com humildade e curiosidade, abrindo mão das certezas que trazíamos e imaginando (como gesto primordial da criação) um novo real. E é no gerúndio que devemos caminhar: reflectindo, escutando, arriscando, trabalhando.
Todos os sectores artísticos vão ficar profundamente marcados por este período de luto, desde logo, o próprio olhar dos artistas. Mas será na economia do sector, que é a trave mestra da sua produção, que podemos antecipar a maior debilidade. Os profissionais do cinema vivem do retorno do seu trabalho diário, sem qualquer tábua de salvação - no nosso país -, privada ou governamental. Raros são os que assinam contratos. Não trabalhamos em continuidade (os filmes são geralmente feitos entre curtas janelas de tempo). O número de profissionais das diferentes áreas cinematográficas excede a oferta anual de filmes produzidos. Os apoios financeiros do Instituto do Cinema são desajustados às necessidades reais dos filmes. Os baixos orçamentos com que filmamos não contemplam imprevistos. Somos uma arte de dominó, onde a queda de um elemento compromete a queda da peça vizinha: não há ideia sem autor, não há filmes sem dinheiro, não há realizador sem personagens, não há produtor sem equipa, não há cinemas sem público e, sobretudo, não há filmes sem humanidade.
Estruturas de produção independente como a Terratreme (produtora fundada por um colectivo de realizadores e produtor com quem trabalho há 6 anos) sofrem incomparavelmente com a paragem de produção, pois a sua vitalidade está intrinsecamente relacionada com a entrada e gestão dos apoios financeiros para cada filme e respectivas co-produções internacionais. Com a paragem do sector numa escala mundial, sem se produzir e exibir, muitas produtoras (e mesmo realizadores) optaram durante este período por partilhar as suas filmografias online. Como reacção a um silêncio imposto, exploraram e potenciaram as ferramentas que há muito foram entrando no mercado de distribuição. Foram ao encontro das pessoas que estão fechadas em casa, levando o cinema a ser aquilo que sempre foi e que se revela ainda mais necessário neste período: uma janela para o outro e para o mundo. E ainda que esse gesto seja passível de reflexão e de crítica, aponta para o tal atravessar da porta que atrás referi, com os olhos postos num devir.
O streaming é subestimado por aqueles que sabem que a experiência do cinema deve ser tida numa sala pensada e construída para esse efeito. Fazemos filmes para que eles se elevem numa tela, como de um culto sagrado se tratasse - e trata. A arte substituiu a religião como veículo de transcendência para uma grande parte da humanidade e deve reunir condições de contemplação como só os museus e as salas de cinema nos podem oferecer. Essa altitude de pensamento e emoções que atingimos quando vemos um filme em sala - e em comunhão com o outro - é insubstituível. Colocam-se assim várias questões: que experiência é então a que temos em casa quando vemos filmes através dos computadores? Porque estão as salas de cinema vazias? Em que tem contribuído a sociedade civil, o estado e o próprio meio, para a vitalidade (ou falta de) do cinema?
As respostas a estas questões não as temos. Ou melhor, temos opiniões e convicções, uns reparam mais nas distâncias e outros nas proximidades. No momento presente, podemos resistir ou acolher este advento, como o fizemos, aliás, quando o cinema digital entrou em força nas nossas produções. E com o passado temos o dever de aprender: não podemos travar a evolução tecnológica. Os filmes em streaming vieram para ficar, por muito frustrante que seja, num primeiro impacto, para os profissionais do cinema. Mas tudo na vida tem um verso e um reverso. Por detrás de uma luta desleal com as salas de cinema, não estaremos a encontrar formas aliadas de distribuir e difundir os nossos filmes? Não será mais produtivo integrarmos e regulamentarmos os meios domésticos de difusão para simultaneamente apoiarmos a exibição em sala? Não poderá a difusão digital amortecer o impacto da crise que vivemos e vamos viver? Estas e outras mudanças tecnológicas e culturais são processos necessários. São dores de crescimento e uma inevitabilidade inelutável. Qualquer actividade que neste momento conduza a um estado mais harmónico parece-me válida e valiosa.
Neste zeitgeist apresentam-se alguns festivais de cinema como o Visions du Réel na Suiça que se viu obrigado a transformar a sua 51ª edição numa versão online. Solidária com a difícil decisão que o festival tinha em mãos (a outra opção seria cancelar), aceitei as condições para integrar o meu próximo filme, Amor Fati, na competição internacional. Vejo-me diante de uma experiência nova e, para afastar os males, esforço-me por recordar o quanto as artes beneficiaram ao longo da história com a experimentação tecnológica, introduzindo aperfeiçoamento nas técnicas estéticas e narrativas. Tenho-me debatido com questões que não dominava (bitstream, encoding speed, codecs, video compressor, e todo um vocabulário que não tivera antes necessidade de aprofundar) e, mais do que nunca, sinto que os artistas são fruto da sua época. Cabe-nos viver o instante presente sem autopiedade. Responder produtivamente a uma crise é ir ao encontro do mais belo e criativo que a humanidade possui. Não creio que seja prudente parar. Para além da reflexão, devemos usufruir deste interregno. Esta é a lição suprema e indispensável de uma arte em crise.
E se o meu último filme Ama-San, para minha grande satisfação, se aliou à luta pela igualdade de género que pautava o mundo aquando a sua estreia, Amor Fati evoca agora a importância de união entre pessoas (e animais) para juntos enfrentarmos os desafios da vida. Esta pertinência ou, se quisermos, obra do destino, é em si o sentido mais profundo da expressão latina Amor Fati, a aceitação da vida, no mais belo da existência e nos momentos mais dolorosos que Nietzsche evocou: “A minha fórmula para a grandeza do ser humano é amor fati: consiste em nada pretender ter diferente do que se tem, nem para a frente, nem para trás, nem para toda a eternidade”.
Tenho como desejo pessoal que a estreia de Amor Fati possa ser entendida como uma esperança para um sector: uma oração colectiva. É o triunfo da vida sobre a morte. Trabalhemos juntos para uma mudança que integra um olhar novo, individual e colectivo. Olhemos o céu silencioso que antecede a revelação, como Antonius, o cavaleiro do Sétimo Selo, que dialogava com a morte enquanto a Europa era devastada por uma epidemia: “- O vazio é um espelho. Vejo o meu rosto. Vivo agora num mundo de fantasmas. Um prisioneiro dos meus sonhos. - Ainda assim não queres morrer? - Sim, quero. - E o que esperas? - Conhecimento.”
Cláudia Varejão, Abril de 2020
* título extraído de filme do realizador Manuel Mozos, Um Passo, Outro Passo e Depois… (1989)
artigo publicado no JORNAL PÚBLICO de 17 de Abril de 2020