Cada filme que faço é um navio onde entro, mais ou menos artilhado de meios técnicos e recursos humanos, e onde aguardo pelos ventos e tempestades que soprarão contra as velas, sabendo que em mar alto serei, invariavelmente, lançada para fora da embarcação. Só a partir desse naufrágio, como Hans Blumenberg me ensinou, é que começa, verdadeiramente, a feitura do filme. Há que estar pronta para a dura luta das vagas: tout est dangereux ici-bas, et tout est nécessaire (Voltaire).

A experiência do mar alto tem-me trazido mais do que a visão privilegiada das ondas e do céu. Saber usar os mapas, compassos e quadrantes é, em Cinema, escrever guiões que revelam uma visão pensada para que a equipa, também ela naufragada, saiba dirigir-se para o Norte que os une. É da capacidade da gestão da falha que nasce a obra. Nada é inútil, nem a inutilidade. Para nos expormos ao desconhecido do mar precisamos de ter um pensamento concreto e outro abstracto. O concreto medeia a objectividade do oficio e o abstracto segue, fiel, ao nosso lado, em diálogo silencioso com o  nosso mundo interior.

O poeta tem de sobreviver à tempestade para escrever o poema. Chegar a terra firme não é a meta, é o ganho da ousadia do náufrago. É preciso lutar contra as vagas enfurecidas da realidade, como Ulisses na sua Odisseia, e preservar aquele que é o mais precioso guia: a nossa interioridade. Se mantivermos esse rumo firme em direcção a nós mesmos, corremos o risco de nos surpreendermos com o extraordinário alinhamento do acaso. Jacob Christoph Burckhardt, a propósito dos processos de criação, escreveu que todos gostaríamos de conhecer a onda sobre a qual navegamos no oceano, só que essa onda somos nós mesmos.

Sobre aquele que irá assistir ao nosso naufrágio, o espectador, relembro a visão de Lucrécio: a segurança e a felicidade são condições necessárias para despertar a curiosidade. Uma sociedade curiosa é o resultado de um país com boas políticas para a educação, saúde e cultura. Não é o caso de Portugal. Mas nós, cineastas, continuamos a naufragar e a comunicar com os privilegiados que nos observam em terra firme.




Cláudia Varejão, São Miguel, Dezembro 2022




Legómena escrito para a Revista Brotéria de Dezembro 2022