Uma carta branca é em muito semelhante ao início do processo de realização de um filme: avançamos sobre possibilidades incalculáveis e, num gesto mais intuitivo do que pensante, moldamos o tempo e o espaço diante de nós. Assim parto para esta sessão, sem ao certo conhecer a sua forma final.
O convite da Agência da Curta Metragem e do Festival Queer, a quem muito agradeço a honra e a confiança, demarcou, de alguma forma, uma vasta área onde me pude mover e reflectir. Atravessei 20 anos de curtas sem uma intenção definida à priori. Mas celebrar duas décadas de filmes é, necessariamente, um convite a observar a história recente do cinema português. E como cada ofício só existe por efeito dos Mestres, foi para eles que me propus olhar. Mas com um dado acrescido: nas últimas décadas o território que até então pertencia, numa primeira vista, a eles, aos realizadores, passou a ser também partilhado pela presença delas, mulheres cineastas, que foram surgindo com identidades formais e narrativas muito próprias e que permaneceram no terreno com uma obra em ascensão e que hoje preenche, cada vez menos timidamente, as salas de cinema e festivais em todo o mundo.
Certamente serei injusta na exclusão de tantos filmes que poderiam compor esta sessão, pois são muitas as realizadoras que ao longo dos anos contribuíram para que cada uma de nós pudesse filmar. Ainda que - e serve esta ressalva para desinquietar e convocar as novas gerações de mulheres a investir na realização - os filmes realizados por homens ou por mulheres apresente números extremamente desiguais e o pouco aprofundamento da cinematografia em torno de minorias sexuais seja sintomático do longo caminho que, dentro e fora do sector cinematográfico, ainda temos para percorrer. Encaro esta brecha como um estimulo ao trabalho e desejo que nas futuras celebrações fílmicas possamos ter um discurso cada vez mais inclusivo.
A sessão que aqui apresento é composta por cinco curtas metragens que, para além de serem obras assinadas por realizadoras, exploram, para mim, um olhar não colonizado por conceitos e formas já exploradas. Ou como Laura Mulvey assinalaria, são filmes construídos por uma curiosidade e um desejo compulsivo de ver e saber, de investigar algo secreto; uma estética da curiosidade. Em todos os filmes percorremos possibilidades de olhar e de criar linguagem em torno do desejo, da ausência ou do espaço primordial da terra, rompendo com um discurso mais narrativo ou assente no consequencialismo. Mas é no tempo e no espaço com que cada realizadora se aproxima das paisagens que poderemos encontrar um fio condutor, tão livre, e tão cheio de significados, como esta carta branca.
Cláudia Varejão, Paris, 30 de Julho
Texto para a carta branca comemorativa dos 20 anos da Agência da Curta Metragem, com os seguintes filmes: PAISAGEM RENATA SANCHO, UM CAMPO DE AVIAÇÃO JOANA PIMENTA, A TORRE SALOMÉ LAMAS, INSERT - FILIPA CÉSAR, RETRATO DE INVERNO DE UMA PAISAGEM ARDIDA INÊS SAPETA DIAS